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A imigração açoriana em Montreal. A perspetiva de uma criança

18 décembre 2019

Depois de deixar a terra natal, os Açores, em 1958, José-Louis Jácome começa uma nova vida em Montreal. Tem oito anos e descobre o inverno, a hostilidade, mas também a modernidade e a abundância.

Natural de Montreal nascido no arquipélago dos Açores, José-Louis Jácome levou a cabo uma grande busca das suas origens e da comunidade imigrante açoriana. Aqui, deixa as recordações da sua chegada e dos primeiros anos na metrópole do Quebeque.

José-Louis - enfant avant le départ

Fotografia a preto e branco de uma mãe e três filhos entre oito e cinco anos, num quintal com duas casas como pano de fundo.
Coleção pessoal de José-Louis Jácome.

Em março de 1958, eu, a minha mãe e os meus irmãos juntámo-nos ao meu pai que estava instalado em Montreal há quatro anos. Tinha quase nove anos. Tínhamos deixado São Miguel, a nossa ilha nos Açores, e um modo de vida bem diferente do que viríamos a descobrir.

No meu arquipélago natal, a vida era dura e rústica. Conheci um mundo sem eletricidade, sem água corrente, sem casas de banho. Um mundo onde o esgoto estava à superfície, ou a água do banho era aquecida num grande caldeirão negro, onde andávamos descalços, onde tínhamos pouca roupa e praticamente nenhum brinquedo. Evidentemente, não tínhamos frigorífico, rádio, televisão e, por vezes, nem comida. Lembro-me de que, várias vezes, comia apenas uma refeição: pão de milho com puré de pimentos. É uma realidade vivida por vários açorianos.

Uma mudança

José-Louis - enfant

Fotografia a preto e branco de três crianças a sorrir numa cozinha com frigorífico e máquina de lavar e secar. À frente deles, uma mesa bem cheia.
Coleção pessoal de José-Louis Jácome

A chegada a Montreal foi um choque social, cultural, humano. No avião, estava assoberbado pelas primeiras imagens do nosso novo mundo, um país monocromático, branco, plano, imenso, sem horizonte e sem oceano. Confidenciei à minha mãe: “Mãe, o avião enganou-se de planeta”. Nada era comparável ao que tínhamos conhecido ou ao que poderíamos imaginar. Como a maioria dos açorianos, nunca tinha visto uma imagem do Canadá. À nossa chegada ao aeroporto de Dorval, não me lembro de como a minha mãe comunicou com os agentes da fronteira e da alfândega, que falavam uma língua totalmente desconhecida para nós. As formalidades surpreenderam-nos: a minha mãe teve de assumir o nome do marido (nos Açores, as mulheres casadas mantinham o nome de solteira) e os nomes das crianças foram “afrancesados”.

Depois, encontrámos o meu pai, mas eu estava tão desorientado que não tenho qualquer recordação desse momento tão importante. O percurso de táxi numa paisagem toda branca, sem vegetação, pareceu-me muito estranho, e a entrada na grande cidade foi surpreendente: casas com vários pisos, ruas grandes, carros por todo o lado. Para nós, era um mundo totalmente diferente e desconhecido, especialmente porque, na véspera, uma tempestade tinha coberto Montreal de neve. A cena era impossível de imaginar: fios elétricos partidos por cima de imensa neve e automóveis completamente cobertos. O meu pai tinha-nos pedido para vestirmos roupas quentes, mas não tínhamos percebido o que isso queria dizer. Nunca tínhamos estado num sítio com temperaturas negativas. O frio surpreendeu-nos verdadeiramente. O táxi parou em frente ao sítio onde íamos ficar, mas antes de entrarmos, tivemos de transpor, completamente pasmados e desorientados, aqueles bancos de neve fria e subimos, depois, uma grande escadaria exterior que nos levava ao terceiro piso!

Maravilhosa tecnologia

José-Louis - enfant facture

Fatura dos móveis e eletrodomésticos comprados por Manuel Jácome na A. Forget.
Coleção pessoal de José-Louis Jácome

Havia outras surpresas à nossa espera. Antes de mais, uma máquina bizarra com um grande tubo que entrava pelo teto. Era a “fornalha a óleo” que aquecia a casa. Podíamos ver o fogo a queimar no interior. Era incrível. Nunca tinha visto uma máquina assim. Depois, na cozinha, vi outras curiosidades pela primeira vez. Uma “frigideira” a gás, um frigorífico, uma máquina de lavar. Tudo era branco e contrastava com o cinza da cozinha que eu havia deixado essa manhã.

Mas a surpresa das surpresas estava na sala, que era uma caixa com imagens que se mexiam: uma televisão a preto e branco, uma maravilha que descobria pela primeira vez. Estávamos todos boquiabertos perante aqueles objetos de uma modernidade e tecnologia que não conhecíamos. Foi nessa noite que vi pela primeira vez um grupo enigmático de homens com roupas engraçadas que batalhavam com um pequeno disco preto sobre uma superfície gelada.  Toda esta loucura era comentada com muita emoção. Os canadianos de Montreal disputavam um jogo final. Não percebia nada do que estava a ver, mas nunca mais vou esquecer esse momento!

Um verão na varanda

Nos primeiros dias, de forma bem ingénua, eu e os meus irmãos aventurámo-nos no passeio e pelas ruelas. Assim que as crianças da vizinhança nos viram, gritavam palavras que pareciam hostis, empurravam-nos e alguns, batiam-nos. Estes momentos foram os mais difíceis da nossa integração. “Cheios de medo”, subíamos rapidamente as escadas dos três pisos a chorar, para nos refugiarmos dentro de casa. Nem os pais nem nós, as crianças, estávamos preparados para esta situação. Estávamos desamparados.

Durante alguns meses, o nosso terreno de jogo limitava-se muito à varanda das traseiras do terceiro piso e à cabana no jardim. Alguns dias antes, o nosso terreno de brincadeira seria muito mais vasto: a rua, a praia Monte Verde… Foi aqui que esperámos com alguma apreensão a entrada na escola no mês de setembro que se seguiria.

A inscrição na escola

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Fotografia de três crianças numa rua no inverno.
Coleção pessoal de José-Louis Jácome

O meu pai inscreveu-nos nas duas escolas primárias francesas situadas a alguns passos do apartamento. A escola dos rapazes era gerida pelos padres de Saint-Viateur, que estavam muito fixados no passado, desligados da realidade da imigração e que nunca quiseram reconhecer a formação que tínhamos recebido nos Açores. Eram muito intransigentes e pouco acolhedores. O meu irmão (com sete anos e dez meses) inscreveu-se no primeiro ano e eu (com nove anos e quatro meses) também fui inscrito no primeiro ano, mas já tinha terminado metade dos meus estudos primários em São Miguel. O meu pai tentou durante semanas falar com a direção da escola para mudar a situação. Porque é que eu não podia ser transferido para a escola inglesa como a maioria dos imigrantes? O meu pai pensou nisso, mas via nisso outros problemas e gostava que a escola ficasse perto de casa.

A direção acabou por aceitar a minha entrada no segundo ano. Contrariamente aos meus companheiros de turma, eu sabia escrever e contar há muito tempo. Havia apenas a questão da língua, que representava um certo desafio. No início, não percebia nada. Estar na rua ou numa sala de aula e não poder dizer ou compreender uma palavra era muito desgastante. Uma experiência quase indescritível. O meu progresso foi rápido, mas esta perda de dois anos teve um impacto em toda a minha educação.

Insultos e empurrões

José-Louis Jacome - carta de chamada

Documento oficial preenchido no consulado de Portugal em Montreal para a reunião da sua família.
Coleção pessoal de José-Louis Jácome

Chegou então o início das aulas. Íamos conhecer muitos “amigos” novos e estávamos muito nervosos. Os nossos medos confirmaram-se rapidamente. Éramos os únicos portugueses. Havia alguns italianos, poucos, na vizinhança, mas a maioria andava nas escolas inglesas. Os insultos, empurrões e até mesmo as lutas eram um acontecimento frequente na escola e durante os trajetos para lá chegar ou para voltar a casa, apesar de ser perto.

Às vezes, voltava para casa com alguns arranhões e a minha mãe gritava: “O que se passou? Corisco!” O meu pai abominava estas histórias. Queria que não houvesse problemas. Dizia-me: “Que fizeste desta vez?” Muitas vezes, dava-me um par de bofetadas para não discutir sequer. Bem lhe dizia que as outras crianças é que saltavam para cima de mim, mas não valia a pena.

Nos primeiros meses, e talvez nos dois primeiros anos, a nossa falta de conhecimento da língua e o nosso sotaque estrangeiro prejudicaram a nossa integração. Os nossos nomes, também. Quantas vezes gozaram comigo por ter um nome de rapariga? “José?” As lutas seguiam-se, de forma cada vez mais esporádica, até terminar a escola primária, em 1964. Tinha então 15 anos e bons amigos canadianos-franceses. Alguns tinham irmãos mais velhos com a reputação de serem duros de roer. Muitas vezes, isso bastava para acalmar a situação.

As sandes de integração

José-Louis Jacome - noël 1960

Uma mãe e os três filhos pousam com os presentes de Natal recebidos na sala. Vê-se a cozinha como plano de fundo.
Coleção pessoal de José-Louis Jácome.

Enquanto imigrantes, fazíamos de tudo para nos integrarmos na nossa nova comunidade, mas nem sempre era fácil. O pão Weston era essencial para a integração na escola. Pedíamos repetidamente aos nossos pais para o comprar e acabaram por aceitar. A história parece trivial nos dias de hoje, mas a diferença entre os hábitos culinários dos imigrantes e os da comunidade de acolhimento causava vários problemas na integração.

Na escola, os almoços que a minha mãe preparava provocavam comentários depreciativos e risos de gozo. Apertavam o nariz e faziam caretas e diziam: “Que pivete!” Que desespero… A minha mãe tinha o péssimo hábito de nos fazer sandes com côdea e usava carne verdadeira desfiada ou cortada às fatias. Uma cozinha com especiarias, cheiro forte e saborosa, iguarias estranhas aos olhos dos nossos amigos! Como fazíamos tudo para facilitar a nossa integração, organizávamo-nos para engolir esta comida a uma boa distância deles, discretamente, e o mais rápido possível. E até preferíamos ter fome a comer peixe na escola. Quando as sandes tinham peixe, deitávamo-las fora.

De um modo geral, os meus amigos comiam uma fatia de fiambre ou frango prensado entre dois pedaços de pão sem côdea, com ou sem folha de alface. Em comparação com as nossas sanduíches monstruosas, a comida deles era muito mais sofisticada. Tínhamos inveja. Quantos de nós haviam pedido às mães para nos fazer um almoço à canadiana? Uma sandes de pão Weston fatiado e “baloney” ou algo do género. Sem cheiro por favor!

A minha mãe também tinha o péssimo hábito de acompanhar os almoços com fruta fresca. Para ela, isto era um luxo. Mas para nós, durante os dois ou três primeiros anos, a fruta fresca era outro problema de integração. Os nossos amigos, sortudos, tinham sobremesas supermodernas: pequenos bolinhos, biscoitos. Tinham direito a um belo May West dentro de um envelope dourado. Acabámos por convencer a nossa mãe a mandar–nos essa maravilha do Novo Mundo, de tempos a tempos. Era uma felicidade!

A abundância

José-Louis - enfant noël

Fotografia a preto e branco de uma criança com o Pai Natal a entregar-lhe um presente.
Coleção pessoal de José-Louis Jácome

A nossa nova vida em Montreal surpreendeu-nos muito, exigiu grandes esforços de adaptação, mas também nos preencheu. Conhecemos uma abundância que nos era desconhecida nos Açores.

Organizado pelo meu pai, o abastecimento no mercado Jean-Talon, na famosa peixaria Waldman da rue des Pins, nas quintas circundantes, era regular. A minha mãe encarregava-se dos caldeirões da segunda cozinha situada na cave, perto de uma grande divisão fechada onde o meu pai fazia e guardava o vinho. Quando regressava das compras, a cozinha transformava-se em pequeno matadouro e depois, em oficina culinária. Quando tudo estava organizado, havia sempre alguns petiscos a provar e uma boa refeição. Os prazeres abundantes da mesa estavam na ordem do dia.

É um pouco isto o nosso novo mundo, comer e beber sem se preocupar com o dia seguinte. Alimentarmo-nos já não era um problema. A fome era apenas uma recordação. Comer demasiado havia-se tornado o nosso novo problema. As sobremesas que não conhecíamos, os licores que nunca havíamos provado, salvo uma pequeníssima garrafa de Laranjada, estavam presentes em todas as mesas, demasiado cheias quase todos os dias. Conhecemos uma realidade bem diferente.

Já não havia figos secos e laranjas como presente de Natal. Agora, a casa estava decorada com uma árvore de Natal, bolas e grinaldas. Assistimos a outra grande mudança: a direção da fábrica onde o meu pai trabalhava organizava todos os anos uma festa de Natal para os filhos dos funcionários. O Pai Natal, que conheci pela primeira vez em 1958, dava presentes a todas as crianças. Existia mesmo e era incrível! Que felicidade! Não só recebíamos prendas da empresa, como os nossos pais nos davam brinquedos que nunca havíamos imaginado.

No Natal de 1960, o meu pai também comprou um rádio de ondas curtas que substituiu o pequeno rádio que tínhamos desde que chegáramos. Com esta maravilha da tecnologia alemã, podíamos captar sinais do mundo inteiro. Já estávamos muito longe do que tínhamos vivido dois anos antes, na nossa ilha natal, tão isolada.

“Mãe, o avião enganou-se de planeta”

Na manhã do dia 25 de março de 1958, tinha oito anos quando deixei a minha aldeia Natal nos Açores, em direção a Montreal. Antes deste dia, nunca tinha visto:

  Um avião;

  Uma imagem em movimento (vídeo);

  Uma televisão;

  Um rádio;

  Um jornal;

  Um telefone;

  Um frigorífico;

  Um fogão;

  Uma máquina de lavar;

  Uma fornalha;

  Neve, mesmo em imagens.

Nunca tinha conhecido:

  Um dia com menos de 10 °C;

  Uma palavra de francês, inglês ou qualquer outra língua além do português;

  Água quente vinda de uma torneira;

  Um som que não fosse humano, em casa, onde não havia nem rádio nem televisão.

Em casa, não tínhamos:

  Eletricidade (nem luz em casa, nem na rua);

  Água corrente;

  Casas de banho.

 

Na noite do dia 25 de março de 1958, tudo isto já fazia parte do meu mundo, e voltava a encontrar o meu pai. Tinha visto apenas duas fotos dele a preto e branco, durante os quatro anos anteriores.

Référence bibliographique

JACOME, José-Louis. D’une île à l’autre. Fragments de mémoire, Montréal, autoédition, 2018, 255 p.